(◣_◢) Como aprender a linguagem do mal
O mal é um problema moral para todos, difícil de reconhecer em nós mesmos, duro de compreender nas outras pessoas. E difícil de derrotar sem se cometer menos males. Os liberais – eu me incluo nessa categoria – têm um problema especial com o mal, ligado à nossa maneira particular de amor-próprio. Nós gostamos de acreditar que somos tolerantes, mas o mal, por definição, não pode ser tolerado. Acreditamos que a política deveria ser deliberativa, mas nós não podemos deliberar com o mal. Nós pensamos que a política deveria ser governada pela razão, mas os malfeitores, embora capazes de racionalizar, não são razoáveis.
Ler mais aqui:Alan Wolfe, distinto e prolífico professor de ciências políticas na Boston College e autor de mais de 20 livros, incluindo 'The Future of Liberalism’ sobre esses dilemas em 'Political Evil’ ('O mal na política’). Ele distingue entre o mal em geral, e o mal na política em particular, e argumenta que nós deveríamos pensar politicamente sobre o mal, porque o mal sobre o qual nós realmente podemos fazer alguma coisa a respeito é uma forma de política e pode ser derrotado apenas se for compreendido pelo que é.
Ele observa que existe muita maldade por aí e que não tem nada a ver com política: adolescentes chacinando outros adolescentes nos colégios, predadores molestando crianças, solitários perpetrando fantasias de vingança e poder com armas automáticas. Nossos diversos discursos terapêuticos e explanatórios ainda não nos fornecem consolo, em face dessas loucuras assassinas mas, argumenta Wolfe, deveríamos ao menos nos poupar dessas ideias idiotas de que o mal é intrínseco em todos os nossos corações. O assassino norueguês que deu uma rajada de tiros nas crianças em um acampamento de verão do Partido Liberal de lá era um psicopata. Ele não é como nós e nós não somos como ele. Ele não nos diz nada sobre a Europa, sobre a sociedade da Noruega, sobre nada. A situação lhe atribui uma dignidade imerecida. É apropriado lamentar e lembrar do ocorrido e seria prudente manter esse indivíduo trancado para sempre. É uma total perda de tempo dar-lhe ênfase.
O mal político – genocídio, massacre, terrorismo, limpeza étnica – é outro assunto. Aqui, Wolfe argumenta que estamos lidando com motivos, intenções que, mesmo repulsivas, são políticas. Matar todos os judeus não é loucura: é um plano que irá te tornar o mestre de todas as opiniões. Expulsar todos os que não são iguais a você não é insano: isso garante o domínio eterno para os de seu tipo. Aterrorizar as pessoas que você não é capaz de derrotar em uma batalha não é patológico: isso pode forçar o inimigo a render-se.
Então, a primeira lição de Wolfe é uma muito antiga, mas que vale a pena ser repetida. Existe método na loucura aparente. O mundo não é dividido entre o mundo são da política deliberativa e o mundo insano da violência apocalíptica. É tudo política, em todos os níveis. Chamar um ataque terrorista de 'sem sentido’ é meramente admitir que você não entendeu seu propósito.
A segunda lição de Wolfe é que todo o mal da política não é igual. Ele vem em máscaras e tonalidades diferentes e é vital para manter as distinções entre os comportamentos terríveis. Um massacre não é um genocídio. A limpeza étnica não é um genocídio. As coisas são o que são, e nada mais do que isso. A precisão moral é uma condição prévia para a precisão política. Nada se ganha e muito se perde se, na busca pela mobilização da opinião pública para impedir um massacre, você o chama de genocídio. Você estará rebaixando a alcunha da indignação. E da próxima vez que você brigar por alguma coisa, ninguém irá acreditar em você.
Wolfe argumenta que nós somos indiscriminados em nosso uso da linguagem do mal porque apreciamos o que ela faz para a nossa moral. Ela nos torna hipócritas. Chamar outras pessoas de perversas é dar-nos um privilégio moral que talvez não mereçamos e uma permissão moral da qual provavelmente iremos abusar. A linguagem do bem e do mal apenas aparenta criar pureza moral: ela na verdade cria o direito moral.
A pureza moral mobiliza: quem não quer se alistar ao lado do bem contra o mal absoluto? Mas essa pureza também anestesia. Se estou do lado do bem e eles estão do lado do mal, então o que eu não teria permissão de fazer? Os autores dos memorandos de tortura do presidente Bush reivindicaram o privilégio da superioridade moral depois do 11 de setembro e o utilizaram para justificar a tortura.
A política, como Alan Wolfe quer que entendamos, não é um jogo de moralidade. O nosso mundo não é dividido entre as forças da luz e as da escuridão, o bem e o mal, os justos e os condenados, os salvos e os pecadores. Em um mundo politicamente compreendido, os motivos são misturados; todas as intenções são impuras e as equipes no campo da política internacional não se dividem definitivamente entre mocinhos e bandidos.
Todas as vítimas não são inocentes, todos os perpetradores não agem sem algum motivo justificável e todas as soluções políticas apropriadas para o problema do mal envolvem cear com o demônio e comer com uma longa colher.
E por falar no demônio, nem todos os malfeitores são a reencarnação de Lúcifer. Alguns são apenas criminosos e lhes dá grandeza – e também uma importância estratégica não merecida – chamá-los de malvados. A maior parte do mal, como a maioria da política, é estritamente local. Pode ser abominável, mas não é ameaça para nós. Nós precisamos distinguir. A política internacional não é uma batalha contra Lúcifer. É uma luta contra os criminosos e Wolfe argumenta que deveríamos devotar nossas atenções àqueles que ameaçaram a nós ou nossos amigos e esquecer do resto.
Se a metáfora encoraja a falha na distinção, o abuso da analogia história tem o mesmo efeito. Saddam Hussein não era Hitler. Milosevic não era Stalin.
Darfur não é Auschwitz. Clinton não era Chamberlain. O mal contemporâneo já é ruim o suficiente. Não há necessidade de pintar um quadro histórico que não se aplique. Para repetir, as coisas são o que são e nada mais do que isso.
Nós precisamos colocar de lado as caricaturas do bem e do mal atribuídas às tarefas que nossos políticos – e militares – são incapazes de realizar.
Precisamos parar de enxergar a política internacional como um jogo moral, no qual nosso papel é apoiar a vitimização e a inocência contra a malignidade e a crueldade. É preciso contrariar as políticas da violência com uma política que drene o apoio aos malfeitores e os conduza à marginalização. Nós precisamos da disciplina interior e do autoconhecimento para recusar a tentação de crer que estamos sempre do lado dos anjos. Wolfe pede que lutemos contra o mal com a limitação de adultos e não com a convicção de adolescentes: -- PAGE BREAK -- ''A política não pede que nós erradiquemos o mal dos corações obscuros de homens e mulheres. Mas exige que, quando enfrentados por táticas que ameacem o nosso modo de vida na busca pelas metas políticas, pelo menos façamos um esforço para entender porque essas metas foram escolhidas, para começo de conversa. Enfrentar o mal com o mal contamina, mas enfrentar política com política, não’'.
É quando Wolfe segue em frente, passando desses sentimentos generalizados – que parecem ser tanto admiráveis quanto verdadeiros – para exemplos detalhados de ''enfrentar política com política’', que as questões sobre sua abordagem começam a surgir. O que Wolfe faria de diferente? Não sobre a guerra no Iraque, certamente, e não sobre os memorandos de tortura. Isso tudo é óbvio mas, sobre outros assuntos, seu realismo liberal cético fica menos evidente como guia de ação do que ele supõe. Estaria Wolfe dizendo 'não’ à intervenção na Líbia, baseado no fato que Kaddafi, mesmo sendo um criminoso, não posasse como ameaça estratégica e que seus crimes, mesmo perversos, não se elevaram a um nível que incitasse seu impedimento? Estaria Wolfe dizendo 'não’ para uma intervenção em Darfur, baseado do fato de que as matanças não se elevaram ao nível de um genocídio?
Voltando no tempo, o que Wolfe pensa que deveríamos ter feito em relação à limpeza étnica nos Bálcãs? Wolfe quer que compreendamos que todos estavam fazendo a mesma coisa, e não apenas os sérvios. Os croatas, os bósnios, e posteriormente os kosovares: todos queriam limpar todo o resto. O mal não estava confinado ao regime sérvio. A questão é: qual é a diferença? Aqueles que acreditavam que Milosevic devia ser impedido não supunham que ele era Lúcifer, não acreditavam que ele era o único culpado, não acreditavam que suas vítimas eram inocentes indefesos. Eles apenas pensaram que ele tinha de ser impedido. A paz incerta e frágil, mas estável, do acordo de Dayton, imposta uma vez que Milosevic foi impedido, prova que eles estavam certos.
Enfrentar a política do mal com política certamente é melhor do que enfrentá-la com 'drones’ (veículos aéreos não tripulados), assassinatos direcionados e tropas terrestres, mas o aviso de Wolfe pode ser um conselho da perfeição, correto em sua teoria, mas impossível de aplicar em termos práticos. Qual política, exatamente, deveria marginalizar e desmantelar o domínio nefasto do Talibã em Hindu Kush? A América está confiando amplamente nos drones e assassinatos direcionados em parte porque as negociações não deram em nada, as campanhas para conquistar os corações e mentes terminaram na areia e a política democrática em Cabul está em ruínas.
Wolfe argumenta, como se o único obstáculo que nos impede de enfrentar com sucesso o mal político, fosse o nosso próprio sentimento de superioridade moral. Ele fez um trabalho minucioso, corrigindo nosso orgulho – mas esse orgulho não é o único problema. Impedir pessoas que não serão paradas por coisa alguma exige o uso da força. O problema continua sendo quando, e se, utilizá-la.
´fonte: The New York Times
Ele observa que existe muita maldade por aí e que não tem nada a ver com política: adolescentes chacinando outros adolescentes nos colégios, predadores molestando crianças, solitários perpetrando fantasias de vingança e poder com armas automáticas. Nossos diversos discursos terapêuticos e explanatórios ainda não nos fornecem consolo, em face dessas loucuras assassinas mas, argumenta Wolfe, deveríamos ao menos nos poupar dessas ideias idiotas de que o mal é intrínseco em todos os nossos corações. O assassino norueguês que deu uma rajada de tiros nas crianças em um acampamento de verão do Partido Liberal de lá era um psicopata. Ele não é como nós e nós não somos como ele. Ele não nos diz nada sobre a Europa, sobre a sociedade da Noruega, sobre nada. A situação lhe atribui uma dignidade imerecida. É apropriado lamentar e lembrar do ocorrido e seria prudente manter esse indivíduo trancado para sempre. É uma total perda de tempo dar-lhe ênfase.
O mal político – genocídio, massacre, terrorismo, limpeza étnica – é outro assunto. Aqui, Wolfe argumenta que estamos lidando com motivos, intenções que, mesmo repulsivas, são políticas. Matar todos os judeus não é loucura: é um plano que irá te tornar o mestre de todas as opiniões. Expulsar todos os que não são iguais a você não é insano: isso garante o domínio eterno para os de seu tipo. Aterrorizar as pessoas que você não é capaz de derrotar em uma batalha não é patológico: isso pode forçar o inimigo a render-se.
Então, a primeira lição de Wolfe é uma muito antiga, mas que vale a pena ser repetida. Existe método na loucura aparente. O mundo não é dividido entre o mundo são da política deliberativa e o mundo insano da violência apocalíptica. É tudo política, em todos os níveis. Chamar um ataque terrorista de 'sem sentido’ é meramente admitir que você não entendeu seu propósito.
A segunda lição de Wolfe é que todo o mal da política não é igual. Ele vem em máscaras e tonalidades diferentes e é vital para manter as distinções entre os comportamentos terríveis. Um massacre não é um genocídio. A limpeza étnica não é um genocídio. As coisas são o que são, e nada mais do que isso. A precisão moral é uma condição prévia para a precisão política. Nada se ganha e muito se perde se, na busca pela mobilização da opinião pública para impedir um massacre, você o chama de genocídio. Você estará rebaixando a alcunha da indignação. E da próxima vez que você brigar por alguma coisa, ninguém irá acreditar em você.
Wolfe argumenta que nós somos indiscriminados em nosso uso da linguagem do mal porque apreciamos o que ela faz para a nossa moral. Ela nos torna hipócritas. Chamar outras pessoas de perversas é dar-nos um privilégio moral que talvez não mereçamos e uma permissão moral da qual provavelmente iremos abusar. A linguagem do bem e do mal apenas aparenta criar pureza moral: ela na verdade cria o direito moral.
A pureza moral mobiliza: quem não quer se alistar ao lado do bem contra o mal absoluto? Mas essa pureza também anestesia. Se estou do lado do bem e eles estão do lado do mal, então o que eu não teria permissão de fazer? Os autores dos memorandos de tortura do presidente Bush reivindicaram o privilégio da superioridade moral depois do 11 de setembro e o utilizaram para justificar a tortura.
A política, como Alan Wolfe quer que entendamos, não é um jogo de moralidade. O nosso mundo não é dividido entre as forças da luz e as da escuridão, o bem e o mal, os justos e os condenados, os salvos e os pecadores. Em um mundo politicamente compreendido, os motivos são misturados; todas as intenções são impuras e as equipes no campo da política internacional não se dividem definitivamente entre mocinhos e bandidos.
Todas as vítimas não são inocentes, todos os perpetradores não agem sem algum motivo justificável e todas as soluções políticas apropriadas para o problema do mal envolvem cear com o demônio e comer com uma longa colher.
E por falar no demônio, nem todos os malfeitores são a reencarnação de Lúcifer. Alguns são apenas criminosos e lhes dá grandeza – e também uma importância estratégica não merecida – chamá-los de malvados. A maior parte do mal, como a maioria da política, é estritamente local. Pode ser abominável, mas não é ameaça para nós. Nós precisamos distinguir. A política internacional não é uma batalha contra Lúcifer. É uma luta contra os criminosos e Wolfe argumenta que deveríamos devotar nossas atenções àqueles que ameaçaram a nós ou nossos amigos e esquecer do resto.
Se a metáfora encoraja a falha na distinção, o abuso da analogia história tem o mesmo efeito. Saddam Hussein não era Hitler. Milosevic não era Stalin.
Darfur não é Auschwitz. Clinton não era Chamberlain. O mal contemporâneo já é ruim o suficiente. Não há necessidade de pintar um quadro histórico que não se aplique. Para repetir, as coisas são o que são e nada mais do que isso.
Nós precisamos colocar de lado as caricaturas do bem e do mal atribuídas às tarefas que nossos políticos – e militares – são incapazes de realizar.
Precisamos parar de enxergar a política internacional como um jogo moral, no qual nosso papel é apoiar a vitimização e a inocência contra a malignidade e a crueldade. É preciso contrariar as políticas da violência com uma política que drene o apoio aos malfeitores e os conduza à marginalização. Nós precisamos da disciplina interior e do autoconhecimento para recusar a tentação de crer que estamos sempre do lado dos anjos. Wolfe pede que lutemos contra o mal com a limitação de adultos e não com a convicção de adolescentes: -- PAGE BREAK -- ''A política não pede que nós erradiquemos o mal dos corações obscuros de homens e mulheres. Mas exige que, quando enfrentados por táticas que ameacem o nosso modo de vida na busca pelas metas políticas, pelo menos façamos um esforço para entender porque essas metas foram escolhidas, para começo de conversa. Enfrentar o mal com o mal contamina, mas enfrentar política com política, não’'.
É quando Wolfe segue em frente, passando desses sentimentos generalizados – que parecem ser tanto admiráveis quanto verdadeiros – para exemplos detalhados de ''enfrentar política com política’', que as questões sobre sua abordagem começam a surgir. O que Wolfe faria de diferente? Não sobre a guerra no Iraque, certamente, e não sobre os memorandos de tortura. Isso tudo é óbvio mas, sobre outros assuntos, seu realismo liberal cético fica menos evidente como guia de ação do que ele supõe. Estaria Wolfe dizendo 'não’ à intervenção na Líbia, baseado no fato que Kaddafi, mesmo sendo um criminoso, não posasse como ameaça estratégica e que seus crimes, mesmo perversos, não se elevaram a um nível que incitasse seu impedimento? Estaria Wolfe dizendo 'não’ para uma intervenção em Darfur, baseado do fato de que as matanças não se elevaram ao nível de um genocídio?
Voltando no tempo, o que Wolfe pensa que deveríamos ter feito em relação à limpeza étnica nos Bálcãs? Wolfe quer que compreendamos que todos estavam fazendo a mesma coisa, e não apenas os sérvios. Os croatas, os bósnios, e posteriormente os kosovares: todos queriam limpar todo o resto. O mal não estava confinado ao regime sérvio. A questão é: qual é a diferença? Aqueles que acreditavam que Milosevic devia ser impedido não supunham que ele era Lúcifer, não acreditavam que ele era o único culpado, não acreditavam que suas vítimas eram inocentes indefesos. Eles apenas pensaram que ele tinha de ser impedido. A paz incerta e frágil, mas estável, do acordo de Dayton, imposta uma vez que Milosevic foi impedido, prova que eles estavam certos.
Enfrentar a política do mal com política certamente é melhor do que enfrentá-la com 'drones’ (veículos aéreos não tripulados), assassinatos direcionados e tropas terrestres, mas o aviso de Wolfe pode ser um conselho da perfeição, correto em sua teoria, mas impossível de aplicar em termos práticos. Qual política, exatamente, deveria marginalizar e desmantelar o domínio nefasto do Talibã em Hindu Kush? A América está confiando amplamente nos drones e assassinatos direcionados em parte porque as negociações não deram em nada, as campanhas para conquistar os corações e mentes terminaram na areia e a política democrática em Cabul está em ruínas.
Wolfe argumenta, como se o único obstáculo que nos impede de enfrentar com sucesso o mal político, fosse o nosso próprio sentimento de superioridade moral. Ele fez um trabalho minucioso, corrigindo nosso orgulho – mas esse orgulho não é o único problema. Impedir pessoas que não serão paradas por coisa alguma exige o uso da força. O problema continua sendo quando, e se, utilizá-la.
´fonte: The New York Times
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